Exposições
Tempo, Espaço: Lugares
Durante alguns meses nos reuníamos para discutir a exposição Tempo, Espaço: Lugares. O projeto que foi sua origem partiu de uma inquietação, talvez até mesmo um mal estar. Por que há uma sensação incômoda com os rumos da humanidade, justo em um tempo onde a tecnologia e a ciência atingiram um grau de desenvolvimento jamais visto, quando as promessas de um mundo melhor parecem ir escorrendo pelos dedos ? – Um dos símbolos deste mal estar seriam as grandes cidades, outrora locais de oportunidades e esperanças, onde, em pouco tempo, mais de 80% da população mundial se concentrará. Justamente nestas metrópoles perdeu-se a capacidade de usufruir de suas facilidades e do convívio com o outro em vista de uma rapidez e embrutecimento do olhar. Já não vemos o que está em torno e, consequentemente, não vemos o outro que é apenas nossa imagem refletida.
Mas o que pode a arte perante tudo isto? Foi respondendo a esta pergunta que os escritos do geógrafo e pensador Milton Santos nos conduziram naquelas discussões onde com sua amplitude e, porque não dizer, desconfiança em relação ao desenvolvimento tecno-cientifico foram capazes de reforçar algo importante: a arte, enquanto manifestação desprovida de caráter utilitário ou funcionalista, pode, paradoxalmente, atingir objetivos que não existiam aprioristicamente, ou seja: à uma arte que pretende catequisar ou pretensamente conscientizar o outro cada um dos artistas teve liberdade para realizar seus trabalhos, usando as discussões e textos como suporte e não como algo limitador ou coercitivo. Sintomático que os trabalhos, então, tenham sido “alimentados” nas proximidades do MACC, tentando tornar um equipamento urbano mais próximo de todos, humanizando esta relação e reforçando o que Milton Santos disse sobre a necessidade do lugar ser real, aquele local que reconheço, onde eu tenho contato com o outro, inclusive físico.
Marcelo Salles
curador
SOBRE UMA EXPOSIÇÃO DE ARTE CONTEMPORÂNEA
Para Milton Santos (in memorian)
A maneira como Tempo, Espaço: Lugares ganhou seu formato definitivo não é inusitada, ainda que pouco usual. Da concepção do projeto, escolhido em edital, até o resultado que temos hoje, inclusive este catálogo, sempre esteve presente a figura do genial geógrafo e pensador Milton Santos por meio de seus vários textos. A dinâmica conceitual envolvia, em seu lado prático, encontros quinzenais com a leitura e discussão destes textos, complementados com outros autores, as visitas à cidade de Campinas para que os trabalhos fossem concebidos e a “costura” de ambos pela poética individual dos artistas; do outro lado havia uma tentativa de conceber um pensamento sobre o lugar , como definido por Santos, e de que maneira a arte poderia materializá-lo através de uma exposição.
Muitas vezes a compreensão de uma situação complexa passa por vê-la de forma parcial; não é examinando o todo que podemos ter sua real complexidade mas sim enxerga-la por uma parte . Portanto para examinar questões urbanas usamos a arte unida à geografia.
Daí o nome da exposição: Tempo ,em relação as cidades, diz respeito as superposições, a combinação de elementos com escalas e idades diferentes, que caracterizam o Espaço . Nas palavras de Milton Santos “o espaço portanto é um testemunho; ele testemunha um momento de um modo de produção pela memória do espaço construido, das coisas fixadas na paisagem criada”1. Essa junção Tempo, Espaço resulta no que podemos denominar Lugar e também sua especificidade; as ações do presente e do passado,as influências locais e as distantes, onde todos os diversos elementos deveriam funcionar sincronicamente.
É quando estes elementos localizados no Lugar passam a não funcionar que temos uma descaracterização da especificidade, principalmente nas grandes cidades. Sintoma da globalização o Lugar passa a ser um espaço indistinguível, onde não mais me reconheço e nem reconheço o outro. Essa desumanização e também a destemporalização do Lugar parecem não ter como serem contestadas perante o pensamento totalitário (Santos sabiamente o denominou globalitarismo).
Talvez uma das poucas possibilidades de contestar esse pensamento hegemônico seja através da arte. Não há idealismo algum nisso. Apenas tentativas de abrir fissuras numa enorme e aparentemente indestrutível estrutura com uma ferramenta antiga, enferrujada, contaminada pelo mesmo sistema que tenta contestar.
Em um mundo em que todas as atividades devem ser produtivas e o tempo é medido em valores monetários abrir possibilidades para um tempo mais lento, mais humano, pode ser algo mais efetivo do que se imagina.
1 SANTOS, MILTON. Por uma Geografia Nova, ed. EDUSP, pg. 173
PROTEÇÃO
No mundo em que vivemos percebemos uma tendência do ser humano ao afas- tamento e ao isolamento, inclusive da própria fé. Relações sociais tênues são cria- das, estabilizando-se apenas durante um tempo. A relação do homem com o divi- no, neste mundo cada vez mais materialista e solitário, está cada dia mais distante.
Segundo o conceito “fluxos”, as pessoas que se deslocam para fazerem uma ati- vidade em um determinado local, estabelecem um vínculo no novo lugar. Base- ando-me nesse conceito, removo anjos da Capela da Santa Casa e os coloco em diferentes pontos da cidade para que novos vínculos se estabeleçam. Os anjos então, nestes diferentes espaços, simbolizam proteção divina.
Anjo significa “mensageiro de Deus”. Acredita-se que o espírito protetor é ligado ao individuo desde o nascimento até a morte. Hoje as pessoas esquecem que sem- pre estão acompanhadas, independentemente de suas crenças: por Deus, por seu anjo protetor, por familiares ou amigos ou por sua força interna.
Refletindo sobre esse conceito e sobre a importância da superação do isolamento e da religação com a própria fé, escolhi algumas imagens de anjos que habitam paredes, grades e tetos da Capela da Santa Casa de Campinas. Bordei imagens de anjos, e as espalhei em diversos lugares da cidade, para lembrar às pessoas que nunca estão sozinhas. Levei a proteção dos anjos, materializada em um adesivo de desenhos bordados por mim sobre tecidos, usando fios de cabelos “sagrados” femininos interferindo sobre roupas antigas de criança que pertenceram a mim e a minha filha.
Segundo Eduardo de Miranda, em Corpo, Território do Sagrado, Ed Loyola, 2000, “O cabelo, coroa (sehar em hebraico), traz a lembrança do que há de mais elevado no homem. Cada fio, em seu mistério, cresce como rebento da árvore humana sobre seu ponto mais próximo dos céus”…
Carol Seiler
CAPELA
A capela anexa ao Hospital Irmãos Penteado, ao lado do MACC, é um lugar de silêncio, recolhimento, pe- numbra, onde apenas uma suave luz exterior fitrada pelos vitrais banha um esquife onde repousa a imagem da Nossa Senhora da Boa Morte. A cena é arrebatadora. A Santa repou- sa, como a meditar, recostada, bela, ainda jovem, vestida com esmêro, no meio da igreja longe do altar, jun- to às pessoas.
É um encontro marcante, singular, uma experiência anacrônica, um tempo dos princípios, uma reflexão sobre a morte e a vida.
A instalação no MACC, na penumbra e no silêncio, transporta a Santa para o mu- seu. Tem como suporte uma caixa de luz, flutuando sobre o piso, que recebe a luz suave de vitrais circundantes, também eles, imagens transplantadas dos vitrais da capela. Para apreendê-la, há que se andar em volta.
De cada ângulo, surge uma nova Santa. A forma não se estabiliza, está em potência, pura inquietação. A imagem da imagem da Santa no museu não seria a presença da ausência de uma presença, tal como a morte em nossas vi- das?
Mas, os museus, tal como as capelas, não seriam também lugares de silêncio, pe- numbra, veneração e quase sacralização?
Afinal, “toda arte é um reflexo da vida. Se não sabemos a finalidade da vida, como é que vamos saber a finalidade da arte? É um segredo. “ (Manoel de Oliveira, 1908- 2015)
Fulvia Molina
DIÁLOGOS
Numa manhã, acompanhado com a Jessica Oliveira, me desloquei até a cidade de Campinas, interior do estado de São Paulo, para realizar a gravação do projeto “DIÁLOGOS”, o qual resultou em um vídeo arte para a exposição “Tempo, Espaço: Lugar” no Museu de Arte Contem- porânea de Campinas “José Pacetti” – MACC.
Escolhemos a Praça de Convivên- cia, próximo ao MACC, para a gra- vação. E, enquanto montávamos o cenário, alguns curiosos, diria an- siosos, se aproximaram para saber o que estava acontecendo ou o que iria acontecer…dada a resposta às curiosidades…. saiam dizendo, en- tre outras palavras, quase em silên-
cio: “pensei que era da TV”…
Eu, um pouco nervoso, meio constrangido e tímido, e a Jessica Oliveira, totalmente a vontade e simpática, fomos nos aproximando de quem por ali passava, pergun- tando se gostariam de participar de um trabalho de arte. Eu dizia; “Você gostaria de participar de uma gravação para meu trabalho? Eu sou artista e vou expor no Museu de Arte Contemporânea de Campinas este ano. Você só precisa responder três perguntas: o que é vida, o que é felicidade e o que é arte”.
Entre respostas negativas e positivas co- meçamos a gravar. Eu, atrás da câmera, observava as respostas e a postura dos entrevistados… de repente me vi em uma outra pessoa… o constrangimento se mis- turou com uma calma que logo se trans- formou numa paz, um sossego muscular… o olhar e a mente olhavam aquelas pesso- as por dentro, no coração… e, elas, expu- nham suas palavras, sua sinceridade, sua alma… apenas um dos entrevistados foi direto, respondendo com uma única pala- vra, um sorriso no final da frase… outros pareciam fazer um desabafo… uma opor- tunidade para dizerem o que pensavam, as suas verdades… a emoção tomou conta de alguns e a timidez de outros…. a dúvida se apresentou, por vezes com o silêncio e o olhar distante… e a convicção se expres- sou no corpo, no gesto e no tom de voz.
De volta à São Paulo, minha mente vagava entre a minha proposta de arte e o que vivenciei em Campinas: o deslocamento do saber da arte e a sabedoria universal; a sutileza entre a vida, a felicidade e a arte e a reflexão momentânea durante a gravação; o deslocamento do lugar e do tempo no objeto de arte e o deslocamen- to do cotidiano para frente da câmera de pessoas que sentem, que amam, que sonham… “…é só saber levar…” como disse um dos entrevistados.
João Carlos de Souza
LUGAR DO TEMPO LENTO
Apresentação
Ao ler os textos do Milton Santos, me detive em algumas das suas observações e passei a explora-las para a construção do meu trabalho.
A primeira delas é sobre a globalização, que interpreto, de forma geral, resultando em limitações; ao contrário do que poderia ser a expansão pelo rompimento de barreiras e diluição de limites, coloca o homem (ou a mim) em um estado de desolação, em um espaço de tempo que se mantém sob tensão. Talvez pela ameaça do desconhecido ou pela imposição da situação – globalitarismo – desencadeando sentimentos melancólicos e solitários.
A segunda é a rugosidade, que na definição citada pelo autor como “… o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição com que as coisas se substituem e acumulam…” vem reforçar meus pensamentos sobre trabalhos anteriores e influenciar na finalização deste.
A terceira encontrei quando ele justifica os vocábulos da moda e diz “eu esconjuro o risco da moda e encontro omodo, isto é, a forma de interpretar o que está se passando em torno de mim”. Essa frase foi o ponto de partida para a minha produção. Estando em Campinas, passei a observar o que estava em torno de mim.
E por último encontro mais uma frase que passa a ser a parte fundamental do meu trabalho: “Readaptar o espaço (do lugar) através da resistência que é capaz de nos mostrar”. “… a resistência pelo tempo lento”.
Então, passo a trabalhar com estas duas frases:
A forma de interpretar o que está em torno de mim e
A resistência pelo tempo lento
E assim escolhi as imagens que pertencem ao meu trabalho, dos locais como a estação ferroviária de Campinas e a praça ao lado do MACC, regiões de Campinas que representam a pausa do tempo ou a passagem dele de forma diferente dos demais lugares.
Marcia Gadioli
HERBÁRIO CARTOGRÁFICO
O museu MACC, espaço público e instituição cultural, localizado no seio da cidade de Campinas, tem como vizinhança o prédio da prefeitura, a biblioteca, a San- ta casa e sua pequena capela, onde se forma um núcleo de ocupação e fluxo de pessoas. Pessoas passam, atravessam esses espaços e corriqueiramente não olham efetivamente, não reparam, como se existisse uma espécie de invisibilidade das coisas, engolidas pelo movimento mecânico do existir. Ali estão lugares para ficar, lugares para entrar, lugares de passagem e lugares que formam paisagens. Cada vez que crio um trabalho de “ site specific,” faço algum tipo de recorte em que tento captar a “alma” desse lugar, como quem espia por um olho mágico uma cena, ou simplesmente experimenta insignificâncias cotidianas que possam tornar-se protagonistas desse olhar. Os jardins, os canteiros, as praças e os par- ques públicos. Lugares de descanso, de contemplação, de devaneios, de parada e de fluxo. Foi então, quando as plantas do jardim do museu começaram, por meio do meu olhar, a falarem por si. Plantas essas que habitam e compõem esses luga- res, formando uma paisagem composta de elementos da natureza, colocadas ali, uma a uma pela intervenção humana.
Como uma cientista que faz uma cartografia local e afetiva, coleto exemplares desses “habitantes”, as plantas do jardim, para meu herbário, composto por amostras dessas plantas secas, que servem como referência sobre a vegetação e flora de uma região, provenientes de determinado ecossistema, em que o inven- tário sistemático desse patrimônio vegetal possibilitará revelar diferentes pontos de vista.
Como guardiões quase imperceptíveis, os jardineiros cuidam desse ambiente em anonimato, alocados embaixo da escada da biblioteca, praticamente num quarto secreto, onde guardam suas ferramentas e descansam quando podem. Ouvir e transcrever um pouco do que pensam e como sentem acerca do que fazem em seu lugar particular, bem como revelar seus vasos e arranjos mais especiais no ambiente expositivo, é parte integrante de um trabalho que apresenta de um lado uma coleção resultante de uma coleta de material transformada em lâminas de um herbário e, por outro, esses arranjos cuidados performaticamente por seus criadores e representantes deste lugar designado.
Lynn Carone
CENAS DE RUA
“A globalização é um período da história (atual) no qual se cria um espaço, um meio geográfico fundado na técnica (conquistas e conhecimento), na ciência e na informa- ção. Nós vivemos a era da informação, vivemos no mundo da velocidade onde as coisas mudam de lugar; o que dificulta a identidade”.
Partindo deste pensamento e tentando descobrir como a arte se comporta diante de situações remetidas à globalização, à falta de identidade, saí em busca de respostas.
Fiz uma pesquisa na cidade de Campinas, mais particularmente nas proximidades do Museu de Arte Contemporânea. Fui à rua para me familiarizar com os “entornos” bus- cando a questão do “lugar e o não lugar”; conversei com algumas pessoas e ao longo desta pesquisa surgiu a ideia de trabalhar a identidade. O que faz com que uma pessoa se identifique com a arte? Como reconhecer as pessoas que pertencem a determinado local mesmo sabendo que tudo muda de lugar? Várias questões surgiram nesse senti- do e, a fim de encontrar respostas, fotografei cenas de rua, pessoas e comportamen- tos. Selecionei as imagens que mais me tocavam dentro deste raciocínio e iniciei meu processo de pintura, em alguns momentos trabalhando figuras humanas e, em outros, imagens reconhecíveis.
Difícil dizer que este processo tenha chegado ao fim, pois para mim é apenas um co- meço, um olhar que tem todas as possibilidades de expansão, um olhar que pretende ultrapassar uma porta que se abriu.
Vera Toledo