Textos Críticos
A arte desinteressada
Escrever sobre arte é sempre tarefa difícil e fadada ao fracasso por dois motivos: o principal é devido ao fato disto assemelhar-se a uma tradução de outra língua e que, por melhor e mais cuidadosa que se faça, algo se perderá no labirinto da subjetividade e da palidez perante o objeto real. A segunda, não menos importante, é a dúvida quanto a relevância da tarefa, principalmente em tempos bicudos como o nosso, devido mais a um certo mal estar (sim, aquele mesmo nomeado por Freud) persistente e crescente entre as pessoas do que à crises econômicas e políticas cíclicas. Enfim, não há possibilidade de deixar de fazer aquilo que nos morde por dentro, restando fracassar de novo, procurando sempre fracassar melhor (obrigado, São Beckett!)
Todavia é nessa desesperança que somos surpreendidos alegremente por um “pulo do gato”; acrobático, leve, colorido. Potência latente se convertendo em movimento, cor e forma indefinida e inusitada.
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Os trabalhos mais recentes de Helena Carvalhosa utilizam tecidos variados e armações ou telas de aço. Mas também são feitos de ar, movimento, luz, memória e do espaço em torno deles.
Mesmo para quem, como eu, acompanha sua produção a surpresa e o desnorteamento se tornam algo comum. Isto não acontece pela variedade de linguagens que ela utiliza (pintura, desenho, cerâmica), mas porque, paradoxalmente, elas se alimentam umas das outras criando relações nada óbvias e, por isso mesmo, complicadas, imperfeitas e inusitadas . Para corroborar o que digo é necessário que se esclareça que estas obras em tecido surgem a partir das esculturas imediatamente anteriores de sua produção, criadas com peças de cerâmica conformadas pelas mesmas armações ou telas.
Estas possuem uma relação terrena, no sentido formal e metafórico, e um peso, real e visual, transfigurado em energia latente através da engenhosa utilização da armação ou da tela que represam a organicidade explicita da cerâmica
Já aquelas…bem, poderia ser dito que sua leveza, colorido e movimento vem dos tecidos, o que seria correto tanto quanto óbvio e raso. Assim como os Parangolés de Oiticica necessitam de um corpo que estruture-os temos a mesma necessidade naqueles trabalhos de Helena. E aqui se faz presente o tal “pulo do gato”: o ato intempestivo estimulado por uma situação que parece não ter solução com o que temos à mão.
Nesta estruturação que Helena agora engendra aquelas armações ou telas das peças com cerâmica não mais represam o movimento; elas o tornam visível. É como se estruturasse o ar, o espaço entre as coisas. E por não poderem mais ser dissociadas dos tecidos tornam-se “incorpóreas”.
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A arte moderna e, por extensão, contemporânea foram capazes, em seus melhores momentos, de produzir obras que ignorassem fronteiras temporais,linguísticas ou de hemisférios. Algumas delas por falarem de coisas ancestrais. Algo que nos transmite uma experiência comum não vivida, mas que sentimos do que se trata.
São obras que conseguem a difícil junção imanente/transcendente. Ambas as séries de Helena (as “cerâmicas” e os “tecidos”), com seus antagonismos e completudes, possuem tanto a energia entranhada no próprio objeto como o fato de sua existência transcender não só uma função mas também seu surgimento. Tomemos um exemplo: as obras de Giacometti possuem essa ancestralidade, certamente retiniana (esqueçamos o oportunismo reducionista duchampiano) e, além disto, possuem o caráter imanente de par com algo transcendente que nos faz pensar que eles não foram feitos por mãos conduzidas por pensamentos humanos. Mas foram pensamentos humanos que os transformaram em algo real e visível! – o próprio Giacometti fala-nos do risco envolvido neste pensamento não pensado que o fazia seguir em frente buscando suplantar a falha que envolvia a mera execução do objeto que tivesse sido pensado antes de sua fatura . Este mesmo risco, essa área de insegurança é comum a Helena. Tomemos outro exemplo: as obras de Gego (Gertrud Goldsmit) , artista alemã que se estabeleceu na Venezuela, também compartilham desse espírito que permeia as obras de Giacometti e Helena sendo, porém, totalmente diferentes. Seus trabalhos com pequenos tubos e arames tem uma “secura” que indicariam um pensamento matemático e racional a orienta-los, mas eles não são regidos pelo cogito ocidental; é o mesmo pensamento não pensado que os rege, que torna visível tanto o ar como o espaço existente que não era percebido.
Estes três artistas, com as diferenças de toda ordem que possuem, compartilham de uma elaboração de memória que podemos denominar como memória-lembrança onde não estamos a falar do pensamento racional ou ordenado segundo a concepção iluminista, mas de uma forma ancestral de pensamento que:
“não tem o sentido usual de entrada imaginaria na experiência pelo pensamento, mas o de entrada no pensamento pela experiência real”
Essa memória-lembrança orientada ao passado, longínquo ou próximo, e que se faz como “conservação e acumulação do passado no presente”
Desta forma, esses artistas lidaram/lidam com um fazer que não era/é orientado por premissas políticas, sociais, mercadológicas; seu interesse reside numa necessidade ancestral, aquela que existia antes de nomearmos todas as coisas e aprisionarmos não somente coisas, mas nós mesmos. Seu interesse é da ordem do “desinteresse” pelo mundano e pelo banal, que parece tão em voga nestes tempos, mas também pela elaboração pesada da intelectualidade.
Talvez não seja por outro motivo que uma artista brasileira como Helena Carvalhosa faça essa arte desinteressada como fizeram um suíço-italiano, uma alemã que foi viver na Venezuela ou como um escritor, poeta e diplomata senegalês educado na Europa que escrevia em francês. Este poeta, Birago Diop, autor do poema Ancestralidade , vivendo em outro tempo e lugar, foi capaz de falar sobre o que vejo nestas obras de Helena Carvalhosa: peças onde sopra um sussurro ancestral; não compreendemos as palavras intraduzíveis , mas sabemos do que elas falam.
Marcelo Salles