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FUNARTE – Edital Pararelos Artes Visuais – São Paulo

 

“lembre-se que a pintura antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher nua ou um tipo de história é, essencialmente, uma superfície plana coberta com tinta organizada numa certa ordem.”
Maurice Denis

Muito já se escreveu sobre pintura mas, até por coerência, uma das melhores definições são as denominadas “pinturas rupestres”. Estes ecos longínquos de algo que fomos ainda são capazes de nos impactar. Não sabemos o que motivou quem os fez, mas uma consideração bem plausível compreende um pensamento que surge com uma complexidade inusitada, na qual marcas feitas com uma intenção e uma certa ordenação tentassem comunicar algo sobre uma “coisa”, que possuía uma existência real, não sendo a “coisa” em si. Desde então, esta forma de comunicação, mas também de pensamento, foi, de maneira cada vez ma is acelerada, se alterando, tornando-se mais complexa e ampla em relação ao que podemos chamar de uma ideia de origem da obra de arte.

Essa complexidade, amparada na evolução do conhecimento humano, não comportaria, portanto, uma única maneira de vermos e descrevermos tudo o que nos cerca ou que está em nós. Como exemplo, artistas que utilizam uma linguagem específica como a pintura passam a lidar com classificações que nos ajudam a compreendê-la. Uma delas seria uma divisão que diferenciaria uma pintura constituída de elementos reconhecíveis, ou figuras, ancorados numa concretude ou realidade. Outra onde os elementos que a compõe não podem ser interpretados ou reconhecidos de maneira direta, pois o que vemos parece estar afastado de algo concreto, real; este “estar afastado” convencionou-se denominar abstração. Este embate figuração versus abstração é recente (poderíamos situa-lo, convencionalmente, em torno de cento e cinquenta anos) e, ainda que simples e esquemático, nos auxilia e serve como porta de entrada para questões mais complexas em relação às artes.

As pinturas reunidas nesta exposição, na unidade de São Paulo da FUNARTE, possuem uma diversidade que, por si só, é um atestado contra um alegado anacronismo ou morte da pintura. Devido a essa diversidade e também para manter-se fiel ao projeto desses dez artistas de proporcionar ao público uma maior aproximação com seus trabalhos e a experiência de “sentir o que vivemos através de nossos olhos” (em suas próprias palavras), a curadoria separou trabalhos ditos figurativos e abstratos.

Desta forma temos numa das salas (galeria Mario Schemberg) seis artistas do grupo associados ao que convencionou-se chamar abstrato.

Dividem uma mesma parede as pintoras Ana Francisca e Ana Gentil. A paisagem motiva ambas, porém para Ana Francisca a paisagem vem modulada pelo deslocamento em rodovias e grandes espaços (série Estou Aqui) e pela memória nostálgica do que deixamos quando saímos de nossos lugares de origem e passamos a reter apenas o que seria essencial a determinada visão (série Paisagens). No caso de Ana Gentil, paisagem parece algo distante do que associamos à palavra. Isto é devido a abordagem que a artista emprega, onde a paisagem exposta está vinculada a uma estruturação em planos horizontais e verticais permeados e contaminados pela cor, revisitando, à sua maneira , um fazer aparentado ao pintor Matisse.

Na parede oposta, Roberta Mestieri tem trabalhos que podem nos conduzir a imagens entrevistas por frestas, como uma persiana ou uma floresta densa, mas as cores que brotam destas frestas (predominantemente vermelhas) nos fazem compreender que seu assunto é outro, como fica explicitado nos quadros Narben (cicatrizes) ou Gleichgultigkeit (indiferença).

Assim também acontece com Edu Silva. Suas dezesseis pequenas telas dispostas à maneira de narrativa cinematográfica (numa licença poética em relação ao “quadro” como fotograma e como evento “projetado” num suporte em branco) buscam, metaforicamente, uma compreensão do racismo estrutural em nossa sociedade miscigenada. Nessas várias misturas possíveis chama a atenção uma onipresente “base” acinzentada; uma faixa que tenta manter-se neutra apesar dos conflitos de cor que ocorrem acima dela (qualquer semelhança com nossa sociedade conflagrada não é, creiam, mera coincidência).

De maneira contraposta, Suzana Barboza e Sérgio Spalter se ocupam de questões internas à própria pintura, seja como abordagem formal e do léxico pictórico, seja como dimensão metafísica, respectivamente. Os trabalhos de Suzana estão ligados fortemente a uma tradição pictórica moderna que também é atemporal: a resposta à pergunta “o que pintar?”, ela tenta obtê-la via relações entre forma e cor e esvaziando toda e qualquer referência a eventos ou elementos reconhecíveis para que a atenção em relação ao que vemos não se disperse. Todavia, nas palavras da artista, elas também tratam de relações humanas, equilíbrio, imperfeição, simplicidade, beleza, fragilidade.

Sérgio Spalter se vale de uma relação mínima, binária (claro-escuro, figura-abstração, indução- dedução), onde um tipo de polarização originada em questões pictóricas amplia seu espectro para falar do mundo ao invés da “aldeia” (ainda que seja da menor aldeia do mundo que ele fala: nós mesmos). Quase monocromos de formato pequeno e regular, a predominância do preto enfatiza a luz, pequenos lampejos que não cabem em si.

Na sala oposta (galeria Flávio de Carvalho) quatro artistas convivem sob o termo, ainda que redutor, figurativo.

Luciana Saad apresenta pinturas que são registros de situações banais, cotidianas. Em relação ao seu aspecto formal, a sua fatura, seu fazer, capta nosso olhar de uma maneira sedutora e agradável. O que parece se insurgir nestas imagens é uma inadequação prestes a explodir sob o manto da normalidade amortecida das relações sociais. Honestas e verdadeiras, elas são mais um desejo do que a realidade que almejam.

Soraia Dias também lida com situações banais; espaços domésticos, móveis, objetos cotidianos. Todavia estes motivos ordenados são apenas uma resposta, contemporaneamente formulada, ao que se deve pintar. Os espaços esquemáticos, cindidos por uma incidência de luz dura, marcada, tentam nos trazer para questões puramente pictóricas e suas implicações. Cabe aqui uma nota pessoal: sua honestidade tenta esvaziar às telas toda e qualquer questão social ou política. Antes de ser alienação, suas pinturas são compensações de posições políticas desgastantes nestes tempos.

Luis Gasparian guarda para seus quadros a dimensão ampla do desejo. Não porque eles tenham dimensões físicas amplas, o que seria comum. Suas construções inseridas num espaço geográfico que oscila entre o onírico e o nostálgico, aspiram à uma ruína clássica, aquilo que idealizamos (que talvez o próprio artista idealize) como algo em que possamos nos espelhar.

Helena Carvalhosa também lida com o desejo. Porém seu desejo é a liberdade. Liberdade de experimentar, de ver as coisas, já por demais vistas, como quem as olha pela primeira vez. Paisagens, árvores, a natureza, aquilo que conhecemos mediados por um olhar original, mas que foi educado a fazer o percurso retilíneo das convenções sociais, pessoais e artísticas e, ainda assim, optou por desvios inusitados.


A origem da obra de arte e do artista é a arte. Essa afirmação do filósofo alemão Martin Heidegger (em “ A Origem da Obra de Arte”) nos remete àquelas pinturas ancestrais das cavernas que se re- fazem todas as vezes que olhamos para elas, acontecendo novamente e trazendo sua verdade como acontecimento em si, enquanto algo que se re-faz continuamente. Essa complexidade acontece porque nós, enquanto seres no mundo e também seres que nos manifestamos em nós mesmos através de nossos pensamentos, tentamos compreender o mundo onde estamos. Para isso criamos artifícios como a pintura e, consequentemente, obras que se valem desta linguagem nos reafirmando no mundo (o que Heidegger, numa interpretação simplificada, definiu como Dasein) mas que se fazem em nós.

Todavia nossos ancestrais não conheciam Heidegger e mesmo nós, talvez, possamos deixá-lo à margem se conseguirmos realizar nossas obras enquanto verdades para nós e para quem toma contato com elas. Se isto for atingido pouco importa que sejam figurativas, abstratas, coloridas, monocromáticas, pequenas, grandes. Elas trarão em si a verdade, aquela mesma verdade ancestral elaborada por seres que desejavam comunicar a outros um pensamento. O mesmo pensamento que nos faz conscientes de nós e de nosso lugar no mundo.

Marcelo Salles
curador