Textos Críticos
Teresinha Chiri
Nunca é demais lembrar o quanto a honestidade é
importante na arte. Ela não garante nada – o artista
precisa ter algo com que e sobre o que ser honesto – e no
entanto é essencial e nunca pode ser separada dos
procedimentos do talento.
Clement Greenberg
Não é tarefa fácil ser artista contemporâneo. Talvez sempre tenha existido essa dificuldade para cada contemporaneidade, haja visto que artistas sempre tiveram de responder a inúmeras demandas, internas ou externas aos seus trabalhos, mas que os constituem e, por conseqüência, ao seu “corpo de obra”. Neste sentido podemos apreender melhor a frase de Greenberg através de uma exemplificação de constituição triangular, artista-obra-sociedade, com configurações mais ou menos regulares em cada uma de suas faces. Para que esta configuração seja regular, equilibrada, como um triângulo equilátero, o artista seria a base e equilibraria os lados direito e esquerdo estabilizando esse nosso triângulo. Não esqueçamos, porém, que várias configurações de equilíbrio podem surgir e, assim como na geometria, nenhuma delas seria mais verdadeira ou correta que outra. Essa variedade é possível ainda que a base, o artista, seja relativamente constante pois é ela que articula as configurações entre “sociedade” e “obra”, estas atreladas a base em seus extremos. As pressões e influências da sociedade, por um lado, e da obra em si, por outro, acabam por formalizar essa mesma obra tanto aos olhos do artista como das pessoas que a vejam (sociedade).
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Teresinha Chiri tem uma trajetória considerável nas artes visuais. Do início na escultura em bronze passando em seguida para o universo da gravura, devido ao embate entre bidimensionalidade e a tridimensionalidade, à um corpo de obra em sua produção atual que não se atém a uma linguagem específica, mas se vale da diversidade alinhavada pela coerência e dedicação. Esta coerência não se apresenta material e formalisticamente; são gravuras tridimensionais, papeis com características magnéticas, cerâmicas que compõem instalações que transitam entre a figura e o abstrato, esculturas “moles” em látex , livros de artista… todavia, a coerência que une tudo isto como um amálgama é de ordem ética. Ainda que fale da e para a sociedade é menos sobre moral que se fala e mais de uma ética spinozana onde prevalece uma forma de ver o mundo e que neste mundo o homem não é o centro do Universo. É a visada ecológica, antes mesmo disso tornar-se moda, que eticamente utiliza para instrumentalizar seus trabalhos. Coerentemente, portanto, sai do bronze para o papel e passa a usar, cada vez com mais rigor, do que apenas a natureza possa fornecer. O exemplo mais original e eloqüente disto são os papéis magnéticos. Aqui fica mais evidente o segundo elemento deste alinhavo: a dedicação, com a qual Teresinha trabalha e que beira a obsessão.Para chegar aos papeis magnéticos sua pesquisa foi intensa e resultou em uma dissertação de mestrado1 ; mais do que isso, porém, chama a atenção o modo como ela manteve-se fiel ao que havia colocado como premissas para esta série de trabalhos. Além da utilização exclusiva de materiais que a natureza proporciona, os trabalhos deveriam incorporar uma participação ativa do público, que mais do que1 o aspecto lúdico, proporcionasse uma conscientização a respeito de possibilidades que a arte e a ciência podem oferecer quando se juntam. Por outro lado o que não ficava evidente nos papéis magnéticos era o esforço, físico mesmo, que envolvia sua fatura, algo mais perceptível em trabalhos como a instalação com mil e cem ovos –objetos manufaturados em cerâmica, acomodados sobre terra e montados sobre uma plataforma. Ainda que pareça algo não tão importante, esse ato do esforço físico que informa à matéria um pensamento é menos a relação histórica, que legitimaria o trabalho artístico pelo árduo trabalho braçal, e mais como uma penitência, talvez inconsciente, por esquecermos que as coisas da natureza tem sua própria causa em existir e que essa causa independe do homem. Como na citada instalação com os ovos-objetos esquecemos de nossa pequenez e finitude (“tu és pó e ao pó há de retornar”).
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Muito do empenho de Teresinha tem origem na gravura. São conhecidas diversas passagens sobre a dedicação quase sacerdotal que os gravadores possuem. O esforço em escavar a madeira ou a pedra ou o metal e ver surgir a imagem transportada para outro meio guarda ainda uma certa magia,independente da tecnologia dos dias atuais. Teresinha, porém, prefere se aproximar da gravura com devoção mas sem receios de incorporar conceitos ou técnicas que ampliem o alcance de uma linguagem tradicional.Suas gravuras tridimensionais não dialogavam somente com o espaço, algo pouco usual, mas já traziam o desejo de interação com o público. Já as “gravuras” em látex atingem seu pleno potencial quando também desenvolvem essa relação espacial, mesmo que não convidem a uma interação que altere sua configuração de montagem, elas guardam um aspecto totêmico e que registram através dos veios da madeira, que guardam sua memória, parte de sua trajetória (em certa medida guardam aproximações com a obra de Frans Krajcberg enquanto registro de algo que já não é mais). Apesar da figura de linguagem potente, “magia” pode ser substituída com mais propriedade por alquimia. Folcloricamente associada ao esoterismo, a alquimia era mais próxima do que hoje denominamos “ciência”, utilizando de elementos da natureza para, mediante pensamento, criar ou recriar outros elementos. Como não falar de trabalhos como os papéis magnéticos ou os recentes livros de artista onde o papel , matéria morta, serve de suporte para elementos vivos numa aproximação com a alquimia original? – ainda que esses e outros trabalhos possuam uma dimensão política há esta evidente camada de leitura que, não sendo óbvia, torna-se relevante.
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Uma das definições para política seria a habilidade de relacionar-se em sociedade tendo em vista a obtenção de resultados desejados, habilidade esta mediada por um conjunto de princípios ou opiniões sobre determinada área. Ao levarmos isto em consideração fica mais compreensível dizermos que toda a arte é política o que, evidentemente, é verdadeiro também para a produção de Teresinha. Penso que isto, todavia, simplifica o entendimento dessa produção. Vejamos: para Teresinha 1 Magnetismo na Arte Contemporânea – São Paulo 2012 – ECS USP Chiri a arte é dotada de um propósito ou uma função. A relação de honestidade que possui com sua produção a faz confiar em seus trabalhos como indutores de uma conscientização e emancipação de quem os vê, mas também que o artista deve desempenhar este papel conscientizador na sociedade. Esta postura perante seus trabalhos é demonstrada até passionalmente, mas o traço mais marcante, no meu entender, é o sentimento de angústia que parece se apoderar não só dela mas, estranhamente, de sua produção. Como já foi dito, Teresinha estrutura eticamente, em uma visada ecológica, seu corpo de obra; importante frisar que este caráter político não torna seus trabalhos panfletários como é mais comum em parcela significativa da produção contemporânea brasileira. Contribuem para isso não só sua já extensa trajetória mas algo que parece “revestir” a base daquele nosso triângulo do início; um misto de honestidade e de, como denominou Greenberg, talento, ainda que eu prefira utilizar algo como empenho ou dedicação em seu lugar. Esta base consegue lidar com as pressões tanto da sociedade como da obra, que deve e precisa ser formalizada. E resistir às pressões destes dois lados do nosso triângulo para que ele se equilibre requer muita força, mental e física. Natural que esta demanda acabe por gerar um sentimento de angústia, devido à pressão para que o equilíbrio se estabeleça mas também porque os resultados práticos não correspondem ao esforço despendido. Ainda que sejam questionáveis os resultados práticos de trabalhos como os de Teresinha Chiri , práticos enquanto politicamente conscientizadores das questões ambientais, alguém precisa fazê- los.Gosto de pensar que algumas pessoas podem assumir tarefas, as mais diversas, que parecem estar além de suas possibilidades ou que dificilmente serão levadas a termo. Ainda assim as executam.
Marcelo Salles
crítico e curador independente