Textos Críticos
A Cidade Visível de Fabio Hanna
As cidades exercem um fascínio sobre nós. Da ordem do sublime, esse fascínio, como é de se esperar, tolhe-nos a razão. Portanto uma descrição, um “retrato”, de um lugar tão plural e polifônico é tarefa mais afeita a análises objetivas e racionais executadas por exemplo, por profissionais da arquitetura ou sociologia e devido a essas características suas conclusões ficam restritas a um grupo reduzido.
Quando artistas resolvem nos mostrar uma cidade, às vezes a mesma em que vivemos, a abordagem é não só diferente como também pode ser oposta. A experiência pessoal acaba por ter grande importância, juntamente com a subjetividade e o irracional. Torna-se uma construção formada por memória, imaginação e percepção. Assim, um tanto quanto paradoxalmente, uma lembrança de uma cidade pode ser formada por uma música, um filme, um livro.
Ou uma pintura.
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A série de pinturas que compõem a exposição Paulicéia, de Fabio Hanna, retratam locais da cidade de São Paulo com miradas pouco comuns. Mesmo quando símbolos urbanos conhecidos (o prédio do “Banespa”, o viaduto do Chá) estão presentes o olhar que os captou estava mais interessado no tecido urbano do que no ícone. Claro que este olhar é permeado por uma interpretação arquitetônica e urbana mais explícita, em parte derivada da formação de Hanna, onde o desenho, o traço, seria predominante; mas o que prevalece é o Fábio com alma de artista, oscilando entre o rigor da gravura (atividade à qual sempre se dedicou e que trouxe-lhe reconhecimento) e o despojamento de uma pintura despretensiosa. Esse despojamento, contudo, merece atenção. Consideradas figurativas, estas pinturas utilizam a cor de maneira pouco convencional como a enfatizar aquele despojamento, mas, na verdade, ele intenta fazer pinturas onde a cor não seja uma complementação do que foi desenhado. Através dos vários planos que compõem as vistas de uma metrópole a cor é utilizada de maneira a enfatizar sua autonomia em relação aos planos citados e desvinculada de qualquer hierarquia compositiva. O “despojamento” aparente é resultado de uma elaboração que ocorre num momento anterior onde o rigor e a técnica estão presentes como condição para que, posteriormente, possam ser utilizados com mais propriedade e liberdade (como as obras utilizando a técnica da aquarela tornam isso claro).
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Uma obra de arte ou uma exposição pode ir além de si própria. Isto é condição de quem a “recebe”, de seu repertório e mesmo de sua disponibilidade para esta recepção e, evidentemente, de uma potência do objeto artístico. Esta potência é tanto maior quanto mais pensamentos este objeto for capaz de suscitar.
Particularmente, esta série de pinturas suscitaram pensamentos diversos. Um deles é a referência direta e os paralelos com a obra, quase homônima, de Mário de Andrade (o livro Paulicéia Desvairada) onde há uma certa irreverência ao tratar a cidade, enquanto musa escolhida, mas também uma amorosidade para com suas falhas, imperfeições e encantos. Outra é da ordem de uma aproximação fonética com a palavra panacéia (remédio para todos os males, em grego), mesmo que a cidade, concreta e de concreto, jamais venha a ser uma solução para nossos males naturais; antes, talvez, ela seja indutora de alguns males modernos o que não diminui nossa relação apaixonada com ela. A última é que, estimulado pelos trabalhos, reli um pequeno livro (Eupalinos ou o arquiteto de Paul Valéry) onde uma parábola, em forma de diálogo, nos fala sobre duas almas discutindo sobre arte, arquitetura, mas, principalmente, sobre a inutilidade de lutarmos contra nossa natureza; sobre uma conquista da imortalidade através da construção de algo que nos ultrapasse temporalmente; e sobre a necessidade de darmos corpo a nossos pensamentos.
Sim, talvez as cidades sejam a grande invenção da raça humana, moldada por necessidades palpáveis, objetivas e racionais. Porém, não seria mais potente a arte? – que nasce de uma necessidade não quantificável, subjetiva e nos chama a atenção para aquilo que tornou-se tão importante e grandioso que não mais cuidamos ou percebemos apesar de nela vivermos?
Marcelo Salles