Encruzilhadas – Exposição individual de Antonio Pulquério

Encruzilhadas – Exposição individual de Antonio Pulquério
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Encruzilhadas – Exposição individual de Antonio Pulquério

O artista visual Antonio Pulquério, apresenta cerâmicas e colagens na sua primeira exposição individual. Encruzilhadas, acontece na Casa Contemporânea, em São Paulo, até 11 de setembro de 2021 e recebe visitas presenciais mediante agendamento prévio.

A ancestralidade, o corpo negro, a Terra-Gaia e os sincretismos religioso e filosófico, através da história da arte ocidental em relação direta com questionamentos decoloniais, tensionam o pensamento dualista e apontam para as infinitas sabedorias que aparecem dos fluxos, embates e negociações propiciados pelos cruzamentos.

Encruzilhadas. Ou sobre onde nos encontramos.

“As encruzilhadas nos apontam múltiplos caminhos, outras possibilidades.”
Luiz Rufino, Pedagogia das Encruzilhadas.

Cerâmica e colagem são duas formas de expressão relevantes no que chamamos arte contemporânea, cada uma a seu modo.
A primeira, tão distante em sua arcaicidade, sempre oscilou entre o profano e o sagrado, entre uma utilidade cotidiana e outra cerimonial, em que, muitas vezes, as formas eram semelhantes para usos diferentes. A segunda é, relativamente, bem mais recente; deriva da possibilidade de reprodução de uma imagem, onde esta adquire novos significados ou interações pelo deslocamento de seu sentido original.
A utilização de ambas por um mesmo artista é arriscada. Menos por suas qualidades formais, como a tridimensionalidade versus bidimensionalidade, e mais pelas imanências que carregam, em dualidades de difícil convivência. É necessário que haja um liame forte elaborado pelo artista.

Antonio Pulquério escolheu a cerâmica, mas pode ter sido escolhido por ela antes mesmo de sua decisão. A ancestralidade que se manifesta em suas peças é real¹. Ele diz que prefere pensar numa pesquisa e num fazer artístico que traga o sentido dos “rituais” de maneira plural e não dogmática para possibilitar o pertencimento de quem quer que seja.
Esse sentido de uma dualidade inclusiva, e não opositiva que marca o pensamento ocidental, tem sua melhor semelhança com a encruzilhada e as possibilidades que ela permite. A sala denominada sal da Terra é montada a partir desta premissa. O mesmo sal que aparece no Novo Testamento (em sentido figurado) da religião católica também aparece (como matéria real) nos banhos rituais da umbanda e do candomblé. Neste cruzo de religiosidades há também lugar para o profano. As cerâmicas ali expostas são constituídas por peças utilitárias, as vezes descartadas, ou por elementos que lembram algo do cotidiano. Para que a passagem do objeto banal à condição de ícone seja feita é necessária uma ação radical: o objeto utilitário tem sua função interditada condenando-o à inutilidade; é neste ponto, um ponto de transfiguração do que é comum, banal², que ele pode tornar-se objeto da cultura e do culto, adquirindo uma qualidade aurática. Essa passagem de um estado a outro possui algo que não é da ordem do visível. O sal também se dilui na água, emprestando a ela seu sabor sem alterar seu aspecto geral.
Já as colagens presentes na sala denominada do que arde permitem o acesso total as imagens, nada está interditado. Porém este acesso total não é construído com as características hiperatrofiadas dos meios digitais. O objeto no qual pensamento e sensibilidade se formalizam acaba por possibilitar fruição; você está diante da imagem no mesmo espaço e essa convivência gera o atrito que Milton Santos tão bem identificou. É o espaço onde os símbolos se multiplicam e lutam pelo olhar do outro. E onde também este outro se reconhece e à sociedade à qual pertence. As imagens e as informações que carregam ganham consistência, ganham um corpo carregado de vivências e sabedoria. Carregado de mandinga³.

Nas conversas com Antônio o conceito de cruzo se estabeleceu (não à toa, este é o nome de seu ateliê). E uma das imagens que vieram com força durante a concepção da exposição é de um cruzamento de caminhos, uma encruzilhada, na região de Brasília antes mesmo de Brasília existir⁴ (e lembro da frase de Emicida sobre Exu em AmarElo⁵). Essa reminiscência está presente nas obras Conceição e Nem todo céu, nem todo mar colocadas em pontos opostos de uma das salas. Não há oposição entre elas: é a possibilidade de que elas existam em sua individualidade, potencializadas pela presença da outra. Sincretismo religioso e filosófico, fé e ciência, profano e sagrado, enfatizando a troca dos “lugares” consensualmente estabelecidos ou ainda, como numa das obras da série aos teus olhos, colocando tudo no mesmo lugar. Subverter a própria ideia do “ devido lugar” das coisas, símbolos e corpos. Pensar quais ainda são os corpos submetidos à opressão, interditando, ostensiva ou veladamente, sua livre circulação. Os corpos do pobre, da mulher, do negro. O corpo do diferente. Essa subversão de uma moral que se pretende legitima, negando a Ética, encontra pouso (ou seu cruzo) nos pensamentos descoloniais, como nos escritos de Frantz Fanon. É uma subversão que se faz mais forte não por negar a experiência colonial (e também asde classe e patriarcal), mas por tirar partido dela e transforma-la em ação legitima , pois o corpo que foi / é forçado ao lugar “devido” agora vai assumir o lugar que quiser pois reconhece a si mesmo e se torna símbolo / imagem potente.
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Quando as possibilidades são interditadas? Quando e porquê fracassamos? – Ainda que o conceito de modernidade e do movimento moderno sejam algo que se desenvolve no Brasil a partir de um conceito do colonizador, foi como possibilidade original que ele se formalizou. Essa originalidade nasce de uma capacidade de olhar e analisar o que não é nosso e transformamos em uma expressão genuína por mesclar sensibilidade e pensamento. Antropofagia? Talvez.
Lucio Costa foi buscar no símbolo da cruz cristã aquilo que marca a alma , o corpo e o lugar para sintetizar o projeto utópico de um país jovem e pobre. Sabemos que não deu certo; precisamos entender os motivos. Arrisco dizer que um deles foi negarmos reiteradamente uma riqueza possibilitada por uma tragédia, por um holocausto: a escravidão. O cruzo de culturas no Brasil é um devir auspicioso sempre adiado, negado e levado à vala do esquecimento. Num Brasil distante no tempo, homens negros, escravizados ou libertos, criaram a partir de músicas europeias composições surpreendentes. Eram chamados “mestres mulatos”. Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, também era negro. Essas obras e tantas outras vão além do que esses artistas eram fisicamente, pois foram executadas por mãos humanas guiadas por um pensamento racional e sensível a partir de suas experiências. Mãos e mentes humanas.

Marcelo Salles | Agosto de 2021

P.s.: Encruzilhadas. A construção dessa exposição permitiu que eu vivenciasse a descolonização do pensamento de maneira a ir além dos textos. Agradeço ao Antônio, aos Ancestrais e a Exu.

Que o erro vire acerto e o acerto vire erro!

1. Antonio descobriu, após começar a trabalhar com cerâmica, que sua avó materna também usou a mesma materia para trabalhar.
2. Essa concepção é desenvolvida pelo filósofo Arthur Danto em “A Transfiguração do Lugar Comum”, editora Cosac Naify, 2005
3. Segundo Luiz Rufino, mandinga é a sapiência do corpo, mas expandido devido a complexidade de saberes que se codificam como a fala; ou, acrescento, nas artes enquanto incorporação – RUFINO, Luiz. In: Pedagogia das encruzilhadas, pg.s. 58/59, Mórula Editorial, 2019
4. Fotografia de Mario Fontenelle – Arquivo Público do Distrito Federal – In: TAVARES, Paulo. A Capital Colonial. [S. l.]: ArchDaily, 15 ago. 2020. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/945354/a-capital-colonial
5. “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”; ditado Iorubá.

Exposição individual: ENCRUZILHADAS, de Antonio Pulquério
Período: 10 de agosto de 2021 à 11 de setembro de 2021
Local: Casa Contemporânea
Rua Capitão Macedo, 370 – Vila Mariana, São Paulo

Agendamento de visitas presenciais:
Telefone: (11) 2337-3015
E-mail: contato@casacontemporanea370.com
Instagram: @casacontemporanea370