Arquiteturas Impalpáveis – Renato Pera

Arquiteturas Impalpáveis – Renato Pera

I

Como tantas outras vezes você está no metrô. Se dirige de um ponto ao outro, chega à sua estação, desembarca; se pergunta se estará um dia claro ou se já estará escurecendo, afinal, estações de metrô são espaços apartados do tempo. Você sobe as escadas e vai passar pela catraca, mas antes disso algo já lhe chama a atenção: uma luz como que refletida que vem de uma caixa, não, não uma caixa, uma vitrine, mas…não há nada nela. Ao se aproximar percebe que realmente não há nada na vitrine e que a tonalidade de luz que dela emana vem do revestimento das paredes e piso; são pequenas placas em um rosa estranho, escuro, mas de um escuro indefinível, montadas à maneira de um quebra cabeças.

Ao sair da estação para a rua e olhar para o relógio se dá conta que perdeu preciosos minutos de seu dia e, numa sensação entre vergonha e raiva, se pergunta como pode ter perdido tempo com um espaço vazio.

II
Renato Pêra lida com construções. De um certo “constructo” mesmo, de uma realidade que se constrói ou de um real  construído e alterado.

Os espaços que ele cria são devedores  de um conceito a saber: arquitetura enquanto construção de espaço sob a luz (1).  Mas, como convém a um conceito, este apenas dá uma direção para pensamentos mais amplos. Desta forma seus espaços não se dão apenas sob a luz; mais recorrente que se façam através, sobre, entre, juntamente, com ela. Sua “arquitetura” é também uma digressão. É uma arquitetura impalpável.

Impalpável como antônimo de algo crível, da necessidade do toque como prova ou aceitação do real; impalpável, pois feita de sensações perceptivas visuais e/ou cinestésicas em confronto com uma realidade reconhecível.  Sensações essas que acabam por conduzir (e peço desculpas pela licença poética) à uma realidade irreal.

III
O primeiro contato com o trabalho do Renato aconteceu por ocasião de uma série de exposições de curtíssima duração quando da inauguração da Casa Contemporânea. O que me chamou mais a atenção à época foi uma certeza, uma assertividade, em relação ao que foi proposto. “Cheia” envolveria uma semana de trabalho para apenas um final de semana exposto, porém, em nenhum momento, ele parecia ter dúvidas quanto à execução e o resultado.
Essa certeza nunca apareceu acompanhada pela arrogância tão  comum a vários artistas que a usam para acobertar um trabalho insuficiente, flácido ou mal embasado.

O trabalho consistia em duas partes independentes mas complementares: uma escavação (“Poça”) , uma poça negra, que tornava o espaço externo um espelho que nos perguntava “Quão profundo eu sou?”. A outra parte (“Noite”) acontecia no hall da escada, totalmente pintada de magenta e com luzes dotadas de filtros também magenta. Não havia truques ou efeitos cenográficos, eram elementos reais e visíveis agindo sobre um espaço e criando fenômenos perceptivos tão fortes ou vertiginosos como ao sair de “Noite” e enxergar, principalmente no período noturno, tudo esverdeado ao redor por alguns instantes

IV
As referências ou embasamento de suas construções não possuem uma multiplicidade aleatória. Na verdade são desdobramentos de uma pesquisa que abarca efeitos físicos visuais e sonoros, história, mitologia e astronomia e utiliza os suportes ou meios adequados ao que se propõem, se realimentando dessas referências.

É assim que, por exemplo, o tema das serpentes aparece em alguns trabalhos iniciais. A forte presença mitológica (2), na cultura asteca, desses bichos sagrados surge em desenhos feitos por computação gráfica  esvaziado de seu sentido religioso subjacente mas que o levou até o México para uma residência artística e reaparece na obra “Tlahuizcalli (Casa de La Aurora)”  montada no Museu Diego Rivera e que consiste em “Tezontle(Columna)”, uma coluna  revestida por “escamas” de papel artesanal, desenvolvidas junto à comunidade local, em tons de magenta. Uma coluna que não sustenta nada a não ser sua própria presença dialogando com as maciças paredes do lugar que formam o vazio onde ela está. Uma presença de algo que se faz assentada em uma ausência.

V
A instalação  “Tlahuizcalli (Casa de La Aurora)”  também possuía um vídeo com a mesma denominação  (que originou um trabalho gráfico, “Skywatching”). Ele mostrava um “eclipse” corporificado em um paralelogramo que, girando sobre seu eixo, em uma velocidade constante, produzia alterações na luminosidade percebida. À esta radiação luminosa, Renato acrescentou valores sonoros para as variações observadas, resultando num ruído de fundo. Ouvia-se a luz.

Esse lidar com fenômenos perceptivos construídos, alterados, codificados já aparecia em trabalhos como o vídeo “Somnus”  feito para a exposição   aluga-se  e continua se desenvolvendo no recente curta “The House of the Rising Sun (p/ Max Ernst)”. Nesses trabalhos é como se a percepção fosse chave para a compreensão de algo que está além do meramente explicável ou como um acesso à verdade (3).

Mas qual verdade? Sim, porque há várias e, portanto, essa multiplicidade ou mesmo simultaneidade requer, de nossa parte, uma disponibilidade para se não entende-las, ao menos pensa-las.

De outra forma não poderíamos entender como verdade que a luz de uma estrela não existe mais como no instante do brilho original, mas sim um percurso temporal; ou como radiações luminosas convertidas em sons nos fazem ver o não visível (como nos radiotelescópios); ou ainda, tempo e espaço como uma única coisa.

Neste ponto, a princípio complexo, parece residir uma força enorme e singela nos trabalhos de Renato Pêra. Esse espaços perceptivos criados por ele agem em simultaneidade com o tempo  para ser algo em si.

De forma simples e genial Alberto Tassinari traduz isto:

“se penso o presente ele se reduz ao instante, mas se o vivo ele é uma presença que também acolhe o espaço  e que  possibilita os movimentos do perceber”(4)

VI

Parado na rua, você resolve voltar; desce  as escadas, mas não pela escada rolante; opta pela outra para poder  mudar de idéia. Mas não mudou.

Pára  em frente a vitrine; se afasta; se aproxima novamente. “ O que estou procurando?” se pergunta.

Não há nada para ver. Um espaço vazio. Pessoas passam, algumas param, por instantes maiores ou menores, outras seguem como se não houvesse nada (você ri e pensa “ mas não há nada mesmo”). É quando se dá conta que já está ali há algum tempo, porém não sente mais raiva nem vergonha.

Talvez um tipo de alegria como quando descobrimos uma solução simples para algo que nos incomodava. Pensa que não é o espaço delimitado que o atrai, nem aquela cor indefinível,  mas o tempo ou a alteração dele que exerce um fascínio quase infantil sobre você e que não precisa de uma explicação para isso.

Sobe as escadas,  atinge a rua; já é noite. Luzes, sons, pessoas, carros, construções. Aquilo que você vê todos os dias.

Porém, agora, você percebe.

Texto de Marcelo Salles

 

(1) – “A arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes reunidos sob a luz”, Charles Eduard Jeanerette-Gris ou Le Corbusier, in Vers une Architecture (2) – J. Campbell, O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1987 (3) –  M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994 (4) – A. Tassinari, Quatro esboços de leitura, posfácio, parte 4, in O olho e o espírito, Maurice Merleau-Ponty. São Paulo: Cosac Naify, 2004, pp. 158. Cabe aqui uma consideração: Merleau-Ponty e, provavelmente, Tassinari consideram a pintura como a melhor figura para a percepção; arrisco-me a discordar, em parte, haja vista trabalhos em diversas linguagens que também são veículos perceptivos que funcionam à contento, desde que lidem com a questão da duração (tempo) enquanto consciência, questão essa elaborada por Bergson (inDuração e Simultaneidade, Henri Bergson. Saõ Paulo: Martins Fontes, 2006. Para uma introdução a este tema, simples e direta, ver O Tempo da série Filosofias: o prazer do pensar, vol. 4, de Fernando Rey Puente, especialmente a pp. 55.