Fulgor Subjetivo – Laura Martínez

Fulgor Subjetivo – Laura Martínez
Zwei Arts

Exposições

Fulgor Subjetivo – Laura Martínez

[…] O que é grande no homem é ele ser uma ponte e não uma meta. O que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um declínio.
Eu só amo aqueles que sabem viver no estado de declínio porque são esses que chegam ao alto e além

Friedrich Nietzsche

 

Laura Martínez apresenta pela primeira vez na Casa Contemporânea, pinturas, monotipias e cerâmicas em sua individual Fulgor Subjetivo, que recebe curadoria de Andrés I. M. Hernández e abre a partir do dia 12 de março de 2022.


Exposição Fulgor Subjetivo, de Laura Martínez
Curadoria: Andrés I. M. Hernández

Abertura: 12 de março de 2022, das 11h00 às 17h00

Visitação: 15 de março a 9 de abril de 2022
Terça a sexta-feira, das 14h00 às 17h00. Sábado, das 11h00 às 17h00.

Local: Casa Contemporânea
R. Capitão Macedo, 370 – Vila Mariana, SP – 04021-020


Laura Martínez e o fulgor subjetivo na construção de manifestos visuais.

[…] O que é grande no homem é ele ser uma ponte e não uma meta. O que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um declínio.
Eu só amo aqueles que sabem viver no estado de declínio porque são esses que chegam ao alto e além[1]

Meu contato com a pesquisa artística de Laura Martínez aconteceu pelo projeto editorial Transgressões Cerâmicas 2020/2021[2]. A proposta que tinha como viés principal a abordagem e projeção dos procedimentos cerâmicos no Brasil possibilitou o encontro com a produção de outras modalidades artísticas construídas pelos artistas visuais participantes e foi o caso de Laura.

Arquiteta pelo interesse no desenho, na matemática e no construir; e com vários cursos complementares: técnica eletricista, moda, pintura, gravura, cerâmica; aparecem como alguns dos embates que perfilam suas construções artísticas. Sua pesquisa visual e estruturas estéticas estão direcionadas à continuidade profunda do entrelaçar aprisionando materialmente em formas, conteúdo e cores que se projetam em questionamentos conceituais reversíveis nos espaços arquitetônicos e aos espectadores, por exemplo.

Mexicana, naturalizada brasileira, a artista visual prioriza desde esse contexto transformar sua experiência em manifestos visuais. Isto pelos potentes embates desde seu México natal ao Brasil – em Porto Alegre e São Paulo respectivamente – transformando suas obras de arte em tecidos de experiências sensíveis, como pontua Rancière[3], não apenas na recepção de informações e não mais com afetos e sim questionando os contextos.

Suas pinturas – as iniciais abstratas: de paisagens, de alcatrazes (copos de leite), evidências de sua admiração pelos muralistas mexicanos – como todas suas obras de arte manifestam marcante impetuosidade e fulgor. […] Pois o ideal matemático ou metamórfico de cada quadro singular expande-se e se quebra. O fulgor nomearia o que resta, o que se arruína sobre o quadro, de tal fantasma quando malogrado. O fulgor seria o acontecimento pictórico de uma fratura da ideal pintura. Talvez ele advenha essencialmente dos equívocos, das indecisões entre espaço óptico e espaço háptico.[…][4] .

Nessas relações entre matéria, cromatismo e conceitos que Laura estabelece em suas obras de arte, há uma concretude dialética em todas as modalidades, desde a pintura aos procedimentos cerâmicos. A cor, por exemplo, brota dessa espécie de forno, deste forno catástrofe. É possível que não brote, não se fixe, não se cozinhe ou se cozinhe mal[5] como aponta Deleuze. Uma espécie de destruição-consumação da obra de arte quando a catástrofe desborda.[6]

Em todas as modalidades artísticas que Laura explora e constrói – pintura, cerâmica, esculturas instalações, gravuras, arte extramuros, monotipias, desenhos, moda, livro de artista, intertextos… transbordam e se desmoronam presságios plásticos reverberantes a partir de reinos subjetivos construídos num realismo e/ou num barroco mágico; flores, borboletas, fios de cobre em emaranhadas cortinas e véus, folhas, máscaras, corpos, cabeças.

Sobre os processos de construção pictórica, a artista se despe para, segundo ela, “sentir minha liberdade e voar toda vez que seguro o pincel e percorro a tela, descobrindo espaços, libertando afetos/efeitos, criando e provocando reações”. Não apenas no óleo e sim em todas as técnicas/materiais relacionadas diretamente com a pintura: monotipias, aquarelas, carvão. Isto se relaciona diretamente com a colocação de Passeron que […] O artista tem um gosto e emoções que o mobilizam, uma visão do mundo em que os afetos precedem a criação.[…][7]. Já a cerâmica, a artista a posiciona como sua companheira, seu fazer, sua artéria para criar, para concretizar seus sentimentos, desejos e sonhos. Assim nesses atravessamentos entre pintura e cerâmica […] É curioso, é como se o pintor tivesse relação com a cerâmica. Sim, evidentemente existe. Utiliza outros meios, mas tem seu forno. Não há cor que não surja deste tipo de forno que está sobre a tela. É o balão de fogo [..][8]

Consequentemente nos processos de conduta produtora de todas as modalidades, a atividade criadora da artista destaca as três diferenças específicas que Passeron cataloga para esse processo: A elaboração de um objeto único (mesmo que destinado a uma multiplicação posterior); dar existência a um pseudo-sujeito (com a obra em execução temos relações de diálogo) e o como a obra compromete seu autor desde o começo da execução, tanto no sucesso social quanto na recusa e na censura[9]. Evidentes essas diferenças ao explorar a maleabilidade e cromatismo dos fios de cobre, em crochê, para prolongar em desenhos ao acasalá-los às peças de cerâmicas com o pretexto de desenhar no ar cartografias que remetem a suas raízes e sua história. Os fios – metálicos, como cobre ou alumínio, de linhas para costurar ou e já na pintura de fios de papel de casca de árvore como suporte para reforçar a construção, reconstrução, representação e instalação de sua atividade criadora.

As obras de arte onde a artista explora os procedimentos cerâmicos reverberam como matrizes de circularidade autoral com todas as outras modalidades artísticas. Como cartografias particulares (irregulares) que constrói – tendo o utilitário e seus processos de construção como suporte de experimentação – e que se projetam como processos de processos que vão criando sólidas e tensionadoras camadas interdisciplinares: […] É o fulgor como o não-senso. Ele evoca algo como a surpresa de um não-é-isto, um não-é-possível […] Mas o fulgor pode igualmente advir, em segundo lugar , como efeito de detalhe.[…] Uma singularidade de intrusão[10].

A constante atualização da artista verifica-se na série de obras de arte onde explora o desejo ancestral da comunicação entre os seres humanos e a transitoriedade cronológica dos instrumentos utilizados para este fim. Se apropriando de formas de cornos, trompas e instrumentos sonoros antigos constrói pelos procedimentos cerâmicos, amplificadores que reproduzem o som de aparelhos contemporâneos como celulares e smartphones. Estabelecendo, assim, “adequações” discursivas das obras de arte constituídas ao espaço arquitetônico, o que chamamos de display, e construindo tensões onde é possível deslocá-las física e sensorialmente, mas, ao mesmo tempo, se adaptando aos novos receptáculos: obra de arte, artista, espaço arquitetônico, espectador, mercado de arte. Assim sendo, não trazem consigo de forma literal a poética do “eu”, ultrapassando a lógica recorrente e distorcida na arte contemporânea do “eu romântico” para projetar diversas e contundentes leituras a partir do contato do espectador com esses manifestos visuais: fazer o espectador declinar do desejo com pensamento[11].

Assim, nas tentativas de comparação, de assimilação, de leituras heterogêneas de ativações sensoriais das obras de arte, o espectador/receptor se depara com a fluidez semântico/espacial/conceitual e associativa/sensorial que definem essas obras, como manifestos visuais a partir de uma semântica e uma fonética expandida desde a arte até o cotidiano, ao ampliar leituras além do dogmatismo literal e cartesiano de interpretação e categorização em todas as obras de arte e as relações entre elas no espaço arquitetônico, nesse embate presencial ou pelas plataformas ou mídias digitais.

Pretende-se, com as obras de arte na exposição provocar discussões, questionamentos e a expansão dos repertórios teóricos e práticos de abordagens das definições pontuais de identidade (tensionando à literalidade associativa do que é idêntico e/ou reconhecível nas relações entre o artista, a obra de arte e o espectador) como migração, liberdade, rebeldia, solidão e da beleza nessa relações (e o belo como categoria histórica) ao esvaecer o direcionamento da experiência particular e social, e a veemente relação com o recorrente elitismo na arte. Sobre o belo, pontua a filósofa, pesquisadora, professora e curadora Dra. Taisa Palhares: Evidentemente, uma história de mais de dois mil anos não pode ser apagada da noite para o dia. Quando afirmamos que o Belo se enfraquece enquanto valor estético ou ideia reguladora não quer dizer que ele não esteja presente aqui e acolá. Contudo, o que parece não existir é uma nova concepção, algo que seja próprio do momento contemporâneo. O que há sim, é uma restituição de algumas das ideias forjadas no decorrer da história. Uma espécie de sobrevida que irrompe nos locais os mais inesperados […][12]. Quando vejo defeitos e/ou deformações os incorporo nas obras de arte, coloca a artista.

Nesses embates torna-se visível a relevância da renovação das relações da artista com teorias, práticas históricas e precedentes formais e materiais, ao mesmo tempo que alerta a partir das obras de arte para uma assimilação projetiva e, sobretudo, para a defesa literal de diretrizes construtivas particulares. Com isso Laura renova pertinente, inovadora e sofisticadamente as miscigenações tensionadoras entre conceitos e espaços, ao disponibilizar manifestos visuais particulares que realçam o papel e as funções do artista visual no sistema artístico contemporâneo.[13]

O conjunto de obras de arte na exposição dissolve a permanente regressão cartográfica de corpos simbólicos para inserir as multiplicidades corpóreas que semeiam conhecimento, instrução, posicionamento crítico e interdisciplinaridade desde as obras de arte. Elas aparecem como processos contínuos e/ou pretextos do fazer artístico, que abordam questões humanas, artísticas, culturais e sociais, e provocam tensionamentos estéticos nas abordagens de questões distintivas particulares e/ou coletivas (memória, poética, interdisciplinaridade, apropriações, identidade, política da arte e mercado de arte) para serem exploradas e atualizadas constantemente desde infinitas confrontações e diálogos.

Andrés I. M. Hernández
São Paulo, Brasil. Verão, 2022


[1] NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falava Zaratustra. São Paulo: Editora Lafonte, 2017. p.19

[2] HERNÁNDEZ, Andrés I. M; GARCIA, Danilo; PINTO, Cristina R. S; SILVA, Cayo Vinícius. Transgressões Cerâmicas – Brasil. São Paulo: SUBSOLO Edições, 2021. pág. 96-97 e 197.

[3] Ver RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo, Editora 34, 2009.

[4] DIDI-HUBERMAN, Georges. A Pintura Encarnada. São Paulo: Editora Escuta Ltda. Editora Fap-Unifesp, 2012. pág. 105

[5] DELEUZE, Gilles. Pintura el concepto de diagrama. Buenos Aires: Editora Cactus, 2008.p. 33. Tradução nossa

[6] Ibidem. p. 26. Tradução nossa

[7] PASSERON, René. Da estética à poiética. Porto Arte, Porto Alegre, v.8.n.15,p.103-106, nov 1997. p. 112

[8] DELEUZE, op. cit., p. 33. Tradução nossa.

[9 ]PASSERON, op. cit., p. 108

[10] DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 106

[11] RIVERA, Tania. Psicanálise antropofágica (identidade, gênero, arte). Porto Alegre: Artes&Eco, 2020. p. 7.

[12] PALHARES, Taisa Helena P. Belo: a breve história de uma ideia.
https://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=15&id=145Acesso 31/01/2022 às 17h30

[13] Ver Transgressões Cerâmicas Brasil 2020/2021 p. 11