Memória e Narrativa, de Adrienne Firmo

Memória e Narrativa, de Adrienne Firmo

Livro de Artista: Produção, Pesquisa e Reflexão

 

“Certamente, se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança,

mas também sobre a dos outros, nossa confiança na exatidão de nossa evocação será maior,

como se uma mesma experiência fosse recomeçada, não somente pela mesma pessoa, mas por várias.”

(Maurice Halbwachs, A memória coletiva)

 

A mostra Livro de artista: produção, pesquisa e reflexão origina-se da experiência conjunta dos artistas em grupos de estudos e pesquisa e tem como tema central suas reflexões acerca da memória.

Cada uma das obras traz em si o trabalho individual de um sujeito que, a partir de seu repertório pessoal, se lembra e traduz o recordado em obra artística, porém, sua constituição em arte e mais, em arte de memória, só se faz coletivamente, uma vez que apenas o grupo pode dar densidade e relevância ao testemunho da lembrança, ser o ouvinte de uma narrativa.

Walter Benjamin, em seu ensaio O narrador, enfatiza o aspecto fundamental que diferencia escritor e leitor de romance de narrador e ouvinte de uma narrativa: a companhia. Tanto o escritor como o leitor estão sozinhos; narrador e ouvinte estão entre outros, em grupo, existem coletivamente. Assim, se memória é ela mesma uma narrativa, apenas seu compartilhamento garante-lhe existência e consistência.

Como narrativas mnemônicas, os trabalhos expostos podem ser considerados como documentos/monumentos, por romperem a barreira física da memória encapsulada no indivíduo. Assim, enquanto registros, ocupam o lugar de documentos, arquivos nos quais as lembranças podem ser acessadas pelo sujeito/artista que rememora, e também partilhadas com o público/visitante que o consulta. Por outro lado, enquanto produção artística, são também, monumentos ou lugares em que a recordação é perpetuada e celebrada socialmente.

Na mostra, cada obra surge materialmente como a conservação do fragmento de memória a ser trazido à luz, e conceitualmente como semente de rememoração, a elaborar e transmitir a experiência. Cada obra é, então, a memória mediada, enquanto que a exposição é a garantia da polissemia do coletivo e o fundo legitimador daquilo que é compartilhado, entre obras, artistas e público.

Desse modo, a execução da mostra, ao erigir como orientação para a escolha e produção dos trabalhos o tema da memória, parece ser uma afirmação e celebração do convívio, da troca de experiências e da construção da realidade conjunta.

Se, num primeiro momento, o voltar-se para as questões relativas à memória traz um aspecto de retraimento, de trajetória solitária, de exílio em si mesmo, em seguida converte-se na experiência partilhada, caminhada comunitária e pertencimento ao grupo. Condição confirmada pelo próprio ambiente de estudo e aprendizado comunitário e grupal que a motivou.

Não cabe aqui o debruçar-se sobre cada um dos trabalhos exibidos, mas àquilo que fenomenicamente os torna um conjunto expositivo, lembrando que o fenômeno é a aparição da coisa à consciência. Assim, o que é trazido, neste caso, à consciência são os fatos de memórias travestidos em arte, expressos por meio de técnicas variadas e relatos subjetivos.

Quanto à modalidade livro de artista, a exposição permite a observância das inúmeras formas, variedade de soluções e expressões que podem assumir, explicitando a dificuldade comum a toda a arte contemporânea de abarcamento de obras por meio da descrição estrita em tipologias artísticas fechadas, bem como a riqueza de possibilidades a serem pesquisadas e exploradas pelos artistas.

Toda experiência expositiva busca relacionar ou ligar o conjunto das obras expostas, a fim de conferir-lhes unidade, tornando-se, dessa forma, veículo privilegiado de entendimento da produção artística e da institucionalização de tendências e categorias, além de procurar corresponder a certa inscrição da produção artística no campo estético e de fornecer instrumentos e meios para a compreensão das obras exibidas.

Para tal, conduz-se na trilha das escolhas plásticas, categoriais, técnicas, conceituais ou temáticas que reúnam os trabalhos exibidos. No caso da mostra Livro de artista: produção, pesquisa e reflexão, duas são as vias que orientam a seleção: a categoria e o tema. Categoria: livro de artista; tema: memória.

Desde seus primórdios o livro de artista é, em geral, tomado como aquela modalidade artística materializada na unidade oriunda da fusão entre visualidade e literatura. É possível, então, abordá-lo como um objeto plástico que conta uma história. Um objeto narrador.

A memória, por sua vez, é o trabalho de tornar o passado em presença ativa no presente, é reconhecimento e reconstrução do já ido, portanto, também, princípio de ação narrativa. Uma reflexão narradora.

A aptidão narrativa seria, então, o fio que une os trabalhos na mostra, tal qual a memória é o que ata os seres, as coisas e os fatos.

 

Adrienne Firmo é doutoranda pela FAU-USP, mestre em Estética e História da Arte, graduada em Filosofia, atua como pesquisadora em artes visuais e curadora independente.