Textos Críticos
Dissensos
“Pluralismo não é igual a uma convivência pacíca;
é apenas entender que existem mais versões numa discussão.”
Pode parecer provocação uma exposição denominada DISSENSOS quando o que se parece buscar, notadamente no brasil, é um consenso, algo que estabeleça um apaziguamento de corações e mentes. Todavia, não seria nesse momento tão particular que deveríamos trilhar um caminho que, ainda que mais difícil sem dúvida, levasse à uma compreensão do que vivemos? – esse caminho é íngreme, acidentado, mas talvez seja o único possível já que o outro que nos é apresentado é plano, uniforme, mas é um caminho circular: nos leva aos mesmos lugares onde já estivemos. Para irmos a novos lugares é preciso colocar em questão o que já sabemos ou está estabelecido; é preciso discutir, pensar de uma maneira não usual sobre o que nos a ige individualmente ou enquanto pertencentes a uma sociedade; é desta maneira que o dissenso contribui, não como crítica negativa à uma convivência pacíca, um consenso, mas como um entendimento de visões de mundo diferentes das nossas ou do senso comum que levam a um convite para pensar junto ao outro.
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Os trabalhos dos artistas integrantes desta exposição estão dispostos de maneira a confrontar-se, seja com o local seja com os outros trabalhos, no jardim estão cerâmicas de Selma Fukai que não buscam mimetizar-se à ele mas integrar-se mantendo suas características; na fachada, Ruth Alvarez expõe um desenho em grande formato; é também dela o trabalho A0 (projeção e vinil adesivado), que vemos ao entrar na parte interna, onde a própria questão do desenho vai dialogar não só com a representação do real mas da auto-apropriação.
A sala esquerda configurou-se como um local de aspecto, digamos, feminista, mas sem resvalar no pan etário. Alguns optam por linguagem mais direta como os de Edilaine Brum (Recatada e do Lar e Bandeja) e de Sheila Kracochansky (Camadas, Mitologia Pessoal e A Dança); em Anita Colli (Tempo), Lucimar Bello (Pés de um dia) e Selma Fukai (Plaquinhas) este caráter feminista tem difícil identificação. Na verdade, esta camada de informação está entremeada a outras como o mercado de trabalho ou a relação com o próprio corpo.
Na sala direita as questões estão aparentemente mais ligadas ao universo próprio da arte, como cor e forma, mas também questões políticas estão representadas; seja de maneira direta e engenhosa como as telas da série Estudos sobre Mestiçagem, de Edu Silva, ou em configurações dialógicas: assim, Vestígios, de Anita Colli, dialoga com as telas de Edu Silva; as pinturas (Sem título) de Selma Fukai fazem o mesmo com os trabalhos Borboleta e As Pedras das Dunas, de Sheila Kracochansky, que, por sua vez, vão se opor em cor e forma aos trabalhos tridimensionais de Beatriz Nogueira (Enquanto a Noite Não Cai) e de Lucimar Bello (Amanhã Virará Pó). Este tipo de configuração dialógica, mesmo que na base do pensamento ocidental, creio ainda ser capaz de estimular novas reflexões.
Na escada, em direção à sala superior, à medida que vamos subindo vislumbramos o trabalho Vagantes, de Beatriz, onde ordenação e aleatoriedade convivem em um tipo de simbiose. Finda a escada vemos quatro desenhos de Ruth Alvarez e outra das assemblages de Edilaine Brum (Enfermo). Mesmo antes de entrar na sala superior é também de Edilaine a obra Berço, instalação que além de questões pessoais e coletivas evoca o conceito de ready made. Neste diálogo de opostos, ou de complementos, à direita temos as cores e formas das cerâmicas de Selma (Orgânicas, Torrinhas e Os Brancos), pinturas de Edu Silva, também da série Estudos Sobre Mestiçagem, em formatos diversos; no piso Espaço em Branco, de Anita, nos fala sobre o acumulo ou excesso, tão presentes nesses tempos; e Sheila cria uma paisagem para a janela que permita-nos estar presente em relação a área interna. Na parte esquerda, onde Berço se localiza, temos contrapontos: de cor, de formas, de acumulo. Beatriz traz os registros de Um, Dois e Já – atitudes que tomam forma de maneira singela; por m Lucimar expõe do Nascimento de uma Montanha. A artista compartilha com todos o processo de um ano que originou esta exposição ou, como ela gosta de dizer, “compartrilha” esse caminho que não aplaina as diferenças mas faz delas estímulo ao fazer e ao pensar.
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O processo que originou a exposição DISSENSOS, mas também o próprio grupo Sem nome (por enquanto), levou pouco mais de um ano, em encontros quinzenais, onde discutíamos sobre arte contemporânea e, por consequência natural, todos os outros assuntos que nos fazem estar no mundo. Este texto não pretende dar conta de toda a riqueza do processo que a exposição sintetiza nem de toda a potência e camadas de experiências que os trabalhos podem proporcionar. Sua intenção é, mesmo em tempos de descrédito generalizado como este, mostrar que não é sufocando o pensamento livre ou uni cando as diferenças que nos tornaremos melhores: não é o que uni ca, mas o que une que nos faz melhores e mais fortes . A arte ainda é capaz dessa união.
Marcelo Salles