PIGMENTO em Santos : “Paisagens, pessoas e coisas deste mundo”

PIGMENTO em Santos : “Paisagens, pessoas e coisas deste mundo”
Zwei Arts

Textos Críticos

PIGMENTO em Santos : “Paisagens, pessoas e coisas deste mundo”

Por que ainda produzimos obras de arte? Talvez você já tenha feito a si mesmo esta pergunta; talvez não. Se você está lendo este texto significa que está ou esteve na exposição do PIGMENTO em Santos mas não, necessariamente, que a pergunta acima seja relevante.Continuaremos procurando respostas, mas o que ela guarda de enigma talvez nunca possa ser elucidado; melhor assim, pois os artistas continuaram a produzi-las.

A paisagem, por exemplo, é um dos temas mais presentes na pintura. Essa mesma paisagem pode assumir significados ou formas inusitadas, viscerais, etéreas, reconhecíveis, atmosféricas; e ainda pode surgir sob outras linguagens.

Nas pinturas de Elisa Bueno reconhecemos paisagens que normalmente associamos a qualquer litoral (como nas duas pinturas em papel montadas em acrílico); todavia um olhar mais detido revela uma atmosfera de incerteza, como se o lugar ali representado fosse por nós conhecido mas não tivessemos certeza se ele existe ou não. Esta presença atmosférica também está presente nas telas de Adriana Pupo mas, diversamente dos trabalhos de Elisa, onde as cores definem os elementos que reconhecemos, Adriana usa tons esmaecidos, baixos, de azuis, rosas, amarelos. Essa quase velatura nos distancia das paisagens onde os limites estão prestes a fundir-se  e pequenos elementos atraem nosso olhar.

Nem sempre a paisagem é espaço aberto, perspectivas longas onde mares, montanhas e vegetação convivem ou a linha do horizonte esta prestes a se desfazer. Renata Pelegrini buscou captar em Santos a intervenção do homem na paisagem. Esta “paisagem construida” anula a mediação da linha do horizonte, inverte perspectivas, transforma gruas em árvores, galpões em morros. Não surpreende que cores e formas decorrentes, nos desenhos ou nas pinturas, sejam dotadas de dinamismo quase palpável. É um tempo acelerado que temos aqui.

Mariana Mattos compartilha com Renata algumas caracteristicas de suas obras, mas aqui surge um contraponto: a referência  não é o espaço construído, que deixa de existir, e sim uma natureza que está prestes a dominar qualquer espaço. Não à toa alguns de seus trabalhos levam como título “pragas”.

E como lidar com o estereótipo da paisagem? Ao falar de Santos (ou de cidades litorâneas) o mar, as montanhas, o sol, o céu, a lua surgem em nosso imaginário. Nas gravuras de Fabio Hanna a paisagem estereotipada deixa de sê-la através da explicitação da fatura, do como fazer. Uma trama de segmentos de linha entrecruzadas, as hachuras, vão se adensando até o limite do que somos capazes de reconhecer. Neste ponto olhamos para cima: um pedaço de céu prateado nos cobre, quase como se as hachuras saltassem do papel para o espaço.

Outro tema historicamente recorrente nos trabalhos de arte é a figura humana. Corpos humanos nus, corpos vestidos, retratos, auto retratos, grupos, pessoas sozinhas em seus afazeres. Uma lista interminável. Mas… e se a ausência de pessoas for a maneira que artistas usam para falar da presença humana?

Três artistas lidaram com este tema , cada uma a seu modo. Lilian Camelli trabalha em suas telas a memória de suas origens, no Paraguai, através de espaços internos. Quartos, corredores, salas, espaços desprovidos da presença humana mas, por isso mesmo, capazes de evocar com mais força a lembrança do que vivenciamos e que, agora, onde não estamos mais presentes. É como se alguém tivesse acabado de deixar o local e tudo parasse, ficasse em suspensão num tempo indefinível.

Os trabalhos de Vera Toledo são de outra ordem. Eles mostram o tempo “presente”, perdem a espessura para ficarem mais próximos do que costumamos chamar “realidade”. São também as únicas que mostram a figura humana, mas é importante percebermos que essas figuras são elementos de cor tanto quanto cadeiras de praia, guarda sóis, objetos quaisquer.

Helena Carvalhosa apresenta uma série composta por pinturas que tem em comum cadeiras. Estas pinturas estabelecem uma ponte entre os trabalhos de Lilian  e Vera pois conjugam a falta da presença humana ao mesmo tempo que transformam um objeto em “figura” ou tema. Através de uma simplificação temática ela nos aproxima de questões primordiais da pintura (cor, forma, tema) para pensarmos a respeito não como comparação mas como possibilidades e ampliação de nossa compreensão.

Nesse campo das possibilidades Helena amplia aquelas questões ditas acima sobre a pintura.

Para um artista a necessidade de expressar-se, de manifestar-se, não precisa de explicações; ela existe. E pode assumir linguagens e materializações variadas.

Em suas pinturas Cyra de Araújo Moreira utiliza formas angulosas e cores fortes. Essas construções geométricas não encontram correspondência no universo, digamos, figurativo. Parecem pertencer melhor ao mundo das indefinições, ao mundo das coisas. Talvez por isso suas esculturas utilizem uma variedade de materiais, com cores naturais ou pintadas, e diferentes texturas.

Essa diversidade “das coisas” também esta presente nos trabalhos de Cecília e Roberto. Cecília Pastore usou como tema algo de que estamos rodeados: embalagens. O tema banal é capaz de proporcionar diálogos  tanto na esfera política (sobre o consumismo) quanto da arte (ao dialogar com trabalhos de Giorgio Morandi), especificamente da pintura (em relação ao tema que propicia a construção de planos e interações com as cores). Já Roberto Fabra parte de uma pesquisa questionadora do proprio estatuto da pintura; a série Role of the Eye during observation (papel do olho durante a observação) não guarda relação alguma com objetos reconhecíveis, paisagens, figuras. Também, devido aos materiais empregados, não há um controle do resultado final. Fica difícil falar em “expressão” do artista, pois o que vemos nas telas pode assumir o significado que quisermos, podem ser “qualquer coisa”. O que temos é mais uma expressão de um pensamento do que de uma ação.

Quando digo que a cidade de Santos esteve presente no pensamento dos artistas do PIGMENTO, ainda que isto apareça de forma tangencial na maioria das obras, acho que o melhor exemplo disso é o trabalho de Marina de Falco. Composto por treze telas do mesmo tamanho onde um tema vai se alterando , o trabalho Quase Dança (e suas derivações) tem ligações fortes com um dos periodos mais fertéis da nossa arte: o concretismo e o neo-concretismo, principalmente  a produção de Hélio Oiticica. Mas é importante saber  que Quase Dança adquire seu formato após uma de nossas reuniões onde vimos / ouvimos algumas obras do outro filho genial da cidade: Gilberto Mendes (sim, claro, o outro é Pelé…).

Tudo é impermanência. Pessoas vem e vão, morrem e nascem; até as paisagens mudam rapidamente pela ação do homem. É o tempo em que vivemos, nem pior nem melhor, talvez diferente apenas. E a arte tenta manter não só uma relação temporal mais calma, um ritmo humano e não das máquinas, mas também guarda a capacidade de permanecer além de nossa existência. Em meio as coisas deste mundo é reconfortante saber que algumas delas podem falar do que ainda é ser humano.

Marcelo Salles
Curador