Textos Críticos
Selma Fukai: A construção de um lugar para estar
Conheci Selma Fukai há quase quatro anos. Durante seis meses nos encontramos quinzenalmente para discutirmos história da arte e exposições que visitávamos; ela já possuía um trabalho no campo das artes (pintura mural e cerâmica), estava inserida profissionalmente, mas não se sentia satisfeita com o que produzia. Ao término do que havíamos planejado ela foi fazer outros cursos e continuar seu trabalho de caráter utilitário. Em 2015 voltamos a nos encontrar; Selma trazia uma bagagem maior, assim como era maior sua vontade de produzir um trabalho em artes visuais que fosse de caráter autoral e que, talvez, aplacasse aquela insatisfação inexplicável.
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Nesta sua primeira individual, Selma apresenta pinturas em tinta acrílica sobre papel e peças em cerâmica. Convém dizer que este formato de exposição não é muito usual mas Selma soube tratar as duas vertentes de sua produção com coerência. As pinturas podem ser classificadas, simplificadamente, de “abstratas”; em formato retangular, os papeis apresentam composições com formas em variadas dimensões e cores rebaixadas, dispostas, aparentemente, de maneira aleatória ora buscando um equilíbrios precário entre si, ora isoladas ainda que mantenham proximidade com as outras formas gerando tensões “espaciais”.
As cerâmicas guardam semelhanças formais com o que vemos nas pinturas. Porém as três series apresentadas (“torrinhas”, “nnnn” e “orgânicas”) vão além do parentesco visual: Selma amplia a discussão sobre escultura, a bidimensionalidade x tridimensionalidade e a relação que se estabelece com o espaço expositivo, se valendo da criação de planos variados (torrinhas), da montagem que tira proveito de uma ordenação que subverte as duas dimensões ainda que montadas à maneira das pinturas (nnn) ou das peças que parecem brotar das paredes ou se agarrar a elas (orgânicas)
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Muitas vezes o artista não tem respostas sobre o que produz. São mais dúvidas do que certezas o que ele possui. Paradoxalmente são estes trabalhos que parecem ter mais vitalidade, pois falam de quem os fez, suas angústias, medos, aspirações, alegrias. Acredito que isto se dê mais pelo fato da relação de honestidade que o artista estabelece com sua produção e consigo mesmo do que por fatores psicológicos ou psicanalíticos. Os trabalhos de Selma são um bom exemplo disso: sua busca por uma linha mais autoral envolve um empenho e uma procura de uma “voz” que a representasse. É neste ponto que ocorre a intersecção entre uma objetividade formal, descrita no parágrafo acima, e a subjetividade que nos forma enquanto pessoas. Serei mais claro. Um trabalho que se coloca como autoral depende mais de como o “autor” convive com fatores externos do que dos fatores externos em si. O empenho de Selma em suprir aquilo que ela considerava uma insuficiência em sua formação artística não negava ou abria mão de sua formação acadêmica em química, como bem exemplifica sua exaustiva pesquisa e desenvolvimento dos esmaltes para as cerâmicas. Essa junção de racionalidade com a mescla de incerteza e intuição mais o trabalho braçal próprio à cerâmica conferem às peças uma personalidade que ultrapassa sua escala. Analogamente, as pinturas tem cores que não “gritam”; é como se um diálogo ocorresse entre as formas corporificadas pelas cores para que uma convivência negociada se estabeleça. Em ambas as linguagens, pinturas e cerâmicas, há uma referencia topográfica, um lugar que surge a partir de vários componentes já citados. Mas onde ou o que seria este lugar?
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Um amigo, pintor reconhecido, disse certa vez : “ A arte é o lugar da saúde, não da doença”. Lembrei desta frase justamente porque Selma construiu este lugar em seus trabalhos como quem constroí um lugar para estar, que transmite uma sensação de calma e placidez, mas que não deixa que os pensamentos fiquem estagnados. Além, é claro, do fato de sua exposição ocorrer num espaço expositivo ligado a um hospital. Quem sabe as obras de Selma Fukai, nesta sua nova trajetória, ajudem a diminuirmos nosso ritmo diário e mantermos a sanidade necessária para não esquecermos de olhar as coisas em volta de nós, prestarmos atenção aos detalhes e curarmos corpo e mente.
Marcelo Salles